O psicoterapeuta disse que sou hiperativo. A criação deste blog surgiu pouco depois de ser assim diagnosticado. Segundo o site especialista Hiperatividade (que já existia antes do meu blog, mas eu não sabia!), os portadores deste distúrbio são freqüentemente rotulados de "problemáticos", "desmotivados", "avoados", "malcriados", "indisciplinados", "irresponsáveis" ou, até mesmo, "pouco inteligentes". Mas garante que "criativo, trabalhador, energético, caloroso, inventivo, leal, sensível, confiante, divertido, observador, prático" são adjetivos que descrevem muito melhor essas pessoas. Eu, particularmente, creio que sou uma mistura disso tudo aí. Cheio de muitas idéias, muitos sonhos e muitos projetos. Muita vontade e muito trabalho. Muitas vertentes e muitas atividades. Sou editor-adjunto do Crônicas Cariocas. Não deixem de visitar minhas colunas: Cinematógrafo; Crônicas; Poesias; e HQs. Ah! Visitem o Magia Rubro Negra , site de apaixonados pelo Mengão, para o qual tive o prazer de ser convidado a fazer parte da especial equipe!!!

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Solo


A vista lateral dá para a baía da Guanabara. É um daqueles prédios antigos, mas bem conservados, do Largo do Machado. A varanda, estilo antigo, é toda de alvenaria. O vento bate no rosto do menino Bruno. Seus olhos molhados e vermelhos são prova de que havia chorado bastante pouco antes. O pré-adolescente, vestindo o uniforme da escola, caminha em direção ao parapeito, trazendo em uma das mãos uma revista e uma folha de papel. Ele coloca a revista no parapeito, sobre ela a folha de papel. Pega uma pedra de um dos vasos de planta e coloca como peso de papel sobre a revista e a folha. Ele começa a subir no parapeito apoiando-se em um dos muitos vasos de planta largos e pesados. O vaso falseia, ele balança, mas consegue subir. Fica em pé, de frente para a rua, fecha os olhos e abre os braços.

A escola ocupa quase um quarteirão. Grande, tradicional e particular. O pátio recebe as turmas do sexto ao nono ano do ensino fundamental para a hora do recreio. Abílio, um menino de catorze anos que sofre de uma pequena deficiência mental, aparece. Ele está de uniforme como todos, mas chama a atenção pela antiga mochila de couro pendurada nas costas, a antiga lancheira de couro a tiracolo, um guarda-chuva embaixo do braço, embora esteja um dia de sol e sem o menor indício de chuva, pelos óculos “fundo de garrafa” e pelo gibi que carrega na mão. Senta-se ereto num canto do pátio e, de forma metódica, coloca o guarda-chuva do seu lado direito e o gibi sobre ele, retira a lancheira do pescoço e a coloca do seu lado esquerdo. Após abri-la, retira um pano e forra o chão à sua frente. Pega uma garrafa de suco e a coloca no canto direito do pano, uma maçã no canto esquerdo e um sanduíche, embalado com papel alumínio, no centro. Verifica rapidamente se tudo está em ordem, desembrulha o sanduíche e começa a comer.

Do outro lado do pátio, Bruno está com mais quatro colegas: Vitor, Julio, César e João.

- Trouxe a parada? – pergunta Julio.

Bruno mostra em suas mãos uma bomba de fogos de artifício, conhecida como “malvina”. Julio assente e exclama:

- Beleza!

João, inseguro, pergunta:

- Mas ele vai mesmo?

- Pô! Ele vai todo dia, né? – responde Bruno

Vitor, ansioso, com um sorriso no rosto, quer saber:

- Como tu vai fazer?

- Vou esperar ele entrar e depois vou lá. Boto a parada e volto.

- Maneiro! Aí é só esperar o mané correr pelado pelo pátio.

Abílio guarda metodicamente a garrafa e o pano, enrola os restos da maçã no papel alumínio. Levanta-se, coloca a lancheira a tiracolo, pega o guarda-chuva e o gibi, joga os restos no lixo e começa a caminhar. Passa pelo grupo de Bruno e seus amigos, com receio, mas arrisca um sorriso e um cumprimento a Bruno, que responde com um olhar firme, um quase imperceptível sorriso e um leve movimento de cabeça. Abílio abre um grande sorriso.

Cesar, percebendo, provocador que é, atiça:

- Ih! Olha lá! O lesado é teu fã, aí!

Vitor aproveita:

- É mesmo! – e, com a voz afetada, provoca ainda mais – Meu herói!

Bruno, sem graça, mas sem querer perder a pose com os amigos, retruca:

- Qual é, mané? Para com isso!

Abílio volta à sua condição de menino fechado e dirige-se aos banheiros no fundo do pátio. Ato contínuo, Cesar dispara:

- Aí! Já é! Vai lá, Bruno!

Bruno observa a movimentação do menino e começa a segui-lo. Abílio chega à entrada, olha para um lado e para outro, desconfiado, e entra no banheiro masculino. Ele abre uma das cabines contíguas e entra. Coloca a mochila no chão, ao lado dela a lancheira e o guarda-chuva pendurado na maçaneta da porta. Abaixa as calças, senta-se no vaso sanitário, pega uma caneta na mochila, abre o gibi sobre suas pernas e começa sua leitura. Bruno entra no banheiro, observa em que cabine está o menino e se direciona à cabine ao lado. Acende a “malvina”, rola-a pelo vão entre uma cabine e outra. A “malvina” para atrás do vaso de Abílio e Bruno sai correndo do banheiro.

Bruno, junto aos quatro companheiros, escuta o barulho da explosão e aguarda a reação de Abílio. Algum tempo passa, meio minuto, nenhum grito e nenhuma ação. Um pouco de fumaça sai do banheiro.

- Cadê o cara? – Bruno pergunta assustado, mais para si que para seus companheiros.

Um inspetor, que escutou o barulho, surge correndo e entra no banheiro. Em seguida, sai correndo e transtornado.

- O que será que houve? – Pergunta João, com medo em sua voz.

Bruno olha para ele e responde:

- Sei lá! Acho que vou lá!

- Tá maluco? – Pergunta Julio.

- Droga! Tamos fu! – Exclama Vitor, sem o menor atrevimento de antes.

- Vou lá! – Bruno diz e vai.

Bruno entra, seguido de mais alguns curiosos, há muita fumaça. Ele se aproxima da cabine do Abílio e vê que a porta está aberta para fora. Atrás da porta, está Abílio caído no chão: Bruno vê apenas sua mão estendida para além da porta. Ele caminha e, bem perto da porta, sente que pisou em algo, involuntariamente se abaixa e pega o gibi que Abílio estava lendo. Logo em seguida, entram no banheiro o inspetor e o diretor da escola.

- Saiam todos! Vão para suas salas! – diz o diretor.

- Vocês ouviram, meninos! Saiam, agora! – complementa o inspetor.

Os meninos saem e eles se aproximam da cabine. O diretor olha para o inspetor com tristeza, saca um celular, digita um número e aguarda atendimento.

A sala de aula ostenta um silêncio tão assustador quanto incomum. As crianças estão em choque pelo acontecido. Bruno está cabisbaixo, atrás da carteira, como se olhasse para o chão. Uma orientadora, pesarosa e com os olhos injetados, chega à porta e chama a atenção da turma. Ele levanta a cabeça, assustado.

- Atenção, turma! Infelizmente, nosso aluno Abílio sofreu um acidente. Ele... – ela hesita – ainda estamos apurando o que aconteceu, mas vamos liberá-los mais cedo hoje.

Uma aluna levanta-se e pergunta:

- Ele morreu mesmo?

- Ele... sim... infelizmente sim. Ele está com Deus agora.

Outra aluna levanta-se.

- Que que aconteceu?

- Gente, ainda não sabemos... achamos que foi o coração, mas não temos certeza.

Ela limpa os olhos com a mão direita, recompõe-se e começa a entregar a cada um dos alunos uma folha de papel.
- Isto é um informativo aos responsáveis de vocês. Tragam de volta assinado por um deles, ok?

Bruno abaixa a cabeça novamente. Não está olhando para o chão, mas, sim, para o gibi que segura com as duas mãos.

Bruno está saindo do colégio. Para, no portão, olha para o gibi em suas mãos e seus olhos marejam. Passa pelo portão e começa a caminhar na rua. Atrás dele, uma ambulância do corpo de bombeiros está chegando à escola.

Bruno caminha na rua, passa em frente ao Palácio do Catete e chega a uma lanchonete de uma conhecida rede de fastfood. Ele para, observa o movimento e resolve entrar. Entra numa das filas. Há muito falatório e risos. O ambiente é alegre. Ele olha para o gibi e, sem pedir nada, sai da fila e vai para uma mesa. Senta-se e fica olhando para o gibi. Atrás da sua mesa, algumas meninas lancham e conversam animadas. Bruno levanta a cabeça, olhos marejados fitando o nada. Ele respira fundo, levanta e caminha em direção à saída. Sai da lanchonete e anda pela calçada, quando se dá conta, chega à entrada do seu prédio. Para e olha para cima. Respira fundo, sobe as escadas e entra.

Bruno está parado de frente para a porta do apartamento. Nela, o número 702. Ele caminha em direção à porta, pega a maçaneta e gira. Ao entrar, encontra seus pais discutindo.

- Não dá! Assim, não dá! Larga do meu pé.

- Não posso! Daqui a pouco vão cortar a luz! Isto é vergonhoso!

- Eu estou desempregado, porra! Ainda não caiu a ficha, não?

- Pai?

O menino chega perto do pai e entrega o bilhete da escola. Mal ele lê, explode em gritos.

- Foi você não foi?

- Eu... eu...

- É claro que foi!

A mãe, protetora, pergunta:

- O que houve?

O pai entrega o informativo à mãe. Ela começa a ler, mas ele não a espera terminar.

- Olha aí o que houve! É por isso que ligaram chamando a gente.

- Não o acuse sem saber.

- Sem saber? Sem saber? O colégio nos chamou para ir lá pra quê? É claro que foi ele. Ele vive se metendo em confusão.

- Ainda assim...

- Ainda assim é o caralho! Toda vez que tem um problema, esse moleque tá envolvido.

A mãe termina de ler o bilhete, leva a mão à boca e, diz, assustada:

- O menino... o menino...

- Pois é, o garoto morreu.... provavelmente  por causa de uma brincadeira de mau gosto como as que o seu filho vive aprontando.

Bruno não aguenta mais e explode:

- Você não sabe de nada! Não está nem aí para saber de nada! Não enche o saco!

O pai dá um tapa em seu rosto e grita:

- Eu tô cansado disso!

A mãe, indignada, retruca:

- Disso o quê?

- Disso... disso... desta vida... o que que eu tô fazendo aqui...

- Por que não vai embora então?

A discussão volta a ser entre os dois, como se o garoto não estivesse ali. Bruno sente-se um nada, uma coisa insignificante. Corre para o quarto e bate a porta.

Bruno senta em sua cama, com olhar sentido. Ele pega o gibi de Abílio e vê em suas mãos uma edição antiga e bem usada da revista do Superman. Bruno abre a revista e começa a folheá-la. Nota que Abílio, em algumas páginas, fazia anotações: abaixo da figura de cada personagem, escrevia um nome. Lois Lane tinha o nome de Ângela sob seus pés; Lex Luthor, o nome de Vitor. Na última página, em que o Superman está dizendo a Jimmy Olsen que este é o seu melhor amigo, o nome Abílio está escrito sob os pés de Jimmy, e o nome Bruno sob as botas vermelhas do Superman. Bruno fecha a revista e abaixa a cabeça. Tenta lutar contra a vontade de chorar. Levanta a cabeça, chorando, um choro contido e triste que se transforma em uma expressão de dor seguida de raiva. E então o choro torna-se uma torrente. Ele se levanta e olha para as portas da varanda. Pega o bilhete informativo da escola, uma caneta e escreve algo.

Os pais de Bruno ainda estão discutindo quando escutam um som surdo de impacto vindo de fora e um alarme de carro disparando. Eles se assustam e param de discutir.

- O que foi isso? – pergunta a mãe.

O interfone toca. O tempo para. O interfone insiste. Pai e mãe parecem estátuas. O rosto dela começa a ir do susto ao desespero. A urgência cresce e o tempo volta a andar. Ela corre para o quarto, o marido a segue. Percebem que Bruno não está lá dentro. Olham para as portas abertas da varanda. O pai senta na cama completamente derrotado. A mãe corre para a varanda.

A mãe debruça-se no parapeito, olha para baixo e grita. Ao seu lado, no parapeito, resistindo ao vento, uma folha de papel sob uma pedra e sobre um gibi. Neste papel, escrito em letras trêmulas, o texto: “Abílio, eu não soube voar. Me desculpa.”. A pedra, por fim, não resiste ao vento e a folha voa.

FIM

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

DEPOIMENTOS: 5. Tito


A proximidade dos quarenta anos tem me deixado nostálgico, buscando lembranças dos “bons tempos”. Aqueles em que não me preocupava com as contas a pagar, em que me sentia invencível e eterno e em que o mundo era muito mais simples: sexo, drogas e rock and roll, mesmo que minhas drogas fossem o álcool e a nicotina do hoje maldito cigarro. Eu era feliz e não sabia.

Com a nostalgia, não sei o porquê, veio a autoavaliação. Descobri-me meu maior crítico (“Se for falar mal de mim, chame-me! Sei coisas terríveis a meu respeito.”)! As verdades que descobri de mim mesmo deixam-me envergonhado e triste. Com isso, vem uma solidão enorme, um vazio maior ainda, uma necessidade incomensurável de mudanças e a estúpida constatação de que não tenho a menor ideia de como mudar coisa alguma.

Hoje, acordei desanimado. Uma dor no ombro direito que me incomoda há dias, mas que resolveu se fazer mais presente nessa madrugada e me acompanhar durante o dia. Entrei no táxi para ir para o trabalho e, ao ligar o tablet, escutei: “Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu.”, da música “Roda Viva”, do tricolor Chico Buarque. Sorri, um sorriso besta, e pensei comigo mesmo há quanto tempo venho me sentindo assim. Nem sei mais dizer.

A psicóloga do meu filho diz-me que tenho que valorizar menos as coisas ruins e devo encontrar aquilo que me faz feliz. Mulher inteligente. Gosto dela e gosto de conversar com ela, mas não consigo fazer o que diz e que, da maneira que fala, parece tão fácil. Nessas horas, sinto-me burro, incapaz e impotente. Queria ser tão capaz e tão inteligente quanto as pessoas acham que eu sou. Aliás, sempre penso que estou desapontando os outros por conta disso.

Quarenta anos e, ao olhar para trás, não vejo nada que preste além dos meus filhos.  O que fiz durante esse tempo? O que construí? O que realizei? O que é digno de nota e de orgulho? Sinto que minha vida é uma imensa perda de tempo, que tudo que eu fiz e faço vale nada e que não represento diferença alguma. Sei que algumas pessoas gostam de mim e que outras me amam. Sei disso. O que sinto é que não faria falta em suas vidas, a menor diferença se estivesse ali ou não. Mesmo para meus filhos, que amo mais que tudo e todos, não sei se sou realmente necessário, se sou uma figura paterna relevante ou apenas um provedor de recursos. Sei que não faz sentido, mas, mais uma vez, é como me sinto.

Não são apenas os filhos. O que represento para meus pais? Para meus irmãos? Para meus parentes? Para meus amigos, próximos e distantes? Para as mulheres que passaram pela minha vida? Será que essas pessoas lembram-se de mim por coisas boas ou apenas pelas muitas falhas? Será que se lembram com carinho ou com ódio? Com simpatia ou rancor? Fui machucado pelo caminho, mas tenho minhas dúvidas se não magoei muito mais que sofri. Por que diabos sinto tanta culpa?

Desde que me separei, há dois anos e meio, foram inúmeros relacionamentos, em sua grande maioria, fúteis e vazios. Na minha ânsia de “voltar ao mundo”, como se estar casado fosse uma prisão – que não é –, machuquei muita gente que não merecia. Pessoas boas que magoei, não intencionalmente, mas que se machucaram mesmo assim. Também encontrei algumas que me decepcionaram, mas que, sendo sincero, não me magoaram porque, na verdade, eu não me importava com elas. Foram apenas pessoas com as quais dormi, mesmo que eu tenha tentado me convencer que me relacionava ou namorava.

Não sei se é essa incapacidade de sentir algo que tem me feito sentir como tenho me sentido. Essa sensação de coração vazio, quebrado e inutilizado. Acredito que sim, mas também creio estar errado. A verdade é que eu não sei. Só tenho dúvidas, nenhuma certeza além daquela com a qual nasci: um dia terei realmente partido, morrido. Apenas não sei quando, mas também não faço a menor questão de saber.

O que eu faço para ganhar a vida é honesto, mas é algo que detesto fazer, ainda mais com determinadas pessoas que tornam tudo mais difícil com suas picuinhas e seus egos inflados. É, porém, o que me dá sustento e me permite dar um mínimo de educação e proteção de saúde aos meus filhos. Também é, infelizmente, o que me prende. Não posso me dedicar ao que gosto, que acredito que me dará um futuro melhor, porque preciso do pouco dinheiro que o detestável garante. Assim, vou me consumindo nesse inferno.

“Roda viva, roda gigante”. Como o brinquedo do parque, roda, roda, mas não sai do lugar. É como remar contra a maré. Estou cansado. Não desisti, mas estou cansado. Tanto que não tenho conseguido fazer nem aquilo que gosto: escrever, criar histórias, literatura e cinema. Olhei para a tela e resolvi digitar o que saísse da mente. Resultado: consigo escrever, mas não o que me importa, apenas este desabafo que mais parece coisa de um maníaco depressivo e suicida.

Depois de quarenta anos, com a convicção que, pela média, tenho aproximadamente mais quarenta, só resta um caminho a seguir. Buscar forças em mim mesmo para mudar o panorama, para tentar de novo, para preencher os espaços vazios, para criar, para fazer diferença, para deixar, pelo menos, uma pequena marca, para não apenas passar pela vida.

Sou feito de cacos, mas não estou quebrado. Sou uma leva de cacos, juntados num monte. Pequenos pedaços variados de mim mesmo. Com pensamentos conflitantes, algumas vezes aleatórios, outras, contundentes. Só sei que meus eus são inúmeros, mais que trezentos, e nunca bastam. Hei de seguir acreditando, tendo esperança em mim mesmo e crendo com todas as forças que amar não é o mesmo que sofrer, que amei muito, que amarei de novo, que realizarei meus sonhos e que o coração não ficará vazio para sempre. Que venham mais quarenta anos, pois é tempo de me reinventar!

Jogo


A gente chega a um ponto na vida em que percebe que ela é nada do que a gente imaginava. Ela ensina que o que aprendemos é pouco e que esse pouco, quase sempre, é relativo. São tantas variáveis, tantas maneiras de se interpretar. Como diriam os mais jovens, a vida trolla a gente, sem dó, piedade ou compaixão. A vida é impessoal e não está nem aí.

As decepções são tantas. Os segredos e as vergonhas acumulam-se. Guardamos tudo dentro de nós a ponto de nos fazer mal. Não confiamos em mais ninguém para confidenciar ou mesmo desabafar. Temos medo de ser julgados, independente de haver ou não um veredito justo. Não queremos julgamento, queremos compreensão, apoio e permuta de experiências.

Os tombos foram tantos. As cicatrizes, profundas e feias, são eternos avisos de “perigo”, “não confie”, “você se decepcionará de novo”, “essa pessoa vai te sacanear” e por aí vai. Fica difícil, quase impossível, abrir-se de novo. Resultado: você se convence de que fica melhor sozinho. Mas a solidão chega e, por mais que você não queira admitir, sente falta de um alguém que possa ouvir e falar sem falsos pudores, que se importe com você e não com as coisas que fez.

O problema é que toda essa segurança, toda essa proteção, toda essa desconfiança, todo esse receio, todo esse medo, essa merda de casulo em que você se enfia, deixa-o cego para quando a pessoa aparece. Ela vem e você não a percebe ou não acredita. O bom é que a pessoa nunca vai embora, nunca desiste. Ela não insiste, não pressiona. Às vezes se afasta, mas está ali, esperando ser notada. Ela sabe que tudo depende de você.

Há um porém. Ela também é igual a você. Precisa das mesmas coisas. Sente-se sozinha e não gosta disso. Também tem dúvidas. Aí, você a vê com alguém e pensa que ela é volúvel, que não o quer de verdade e você se decepciona, mas não por causa dela, decepciona-se por causa das experiências passadas que o levam a julgar da maneira que não queria ser julgado.

Alguns conseguem criar um casulo e afastar todos e tudo. Ficam totalmente sozinhos, mesmo se machucando no processo. Outros não conseguem ficar sozinhos e pulam de relacionamento em relacionamento na vã esperança de encontrar aquela pessoa, que ela sabe quem é, mas que demora tanto que a enche de incertezas.

De incertezas em incertezas, vamos vivendo, deixando “a vida nos levar” ou nos trollar. Sabendo, entretanto, que só depende de nós qualquer passo. Fechar-se em um casulo é uma segurança relativa, pois a consequência é passar pela vida e não a viver. É necessário arriscar-se, não se ganha na loteria sem jogar.

A vida é o jogo, o amor é o risco e ser feliz é o prêmio. Muitas vezes, nessa loteria, faremos alguns pontos ou ponto nenhum. Em alguns momentos, ficaremos a um ponto da premiação máxima. Mas, com muita insistência e alguma ventura, podemos tirar a sorte grande. É necessário arriscar. Vamos jogar!