O psicoterapeuta disse que sou hiperativo. A criação deste blog surgiu pouco depois de ser assim diagnosticado. Segundo o site especialista Hiperatividade (que já existia antes do meu blog, mas eu não sabia!), os portadores deste distúrbio são freqüentemente rotulados de "problemáticos", "desmotivados", "avoados", "malcriados", "indisciplinados", "irresponsáveis" ou, até mesmo, "pouco inteligentes". Mas garante que "criativo, trabalhador, energético, caloroso, inventivo, leal, sensível, confiante, divertido, observador, prático" são adjetivos que descrevem muito melhor essas pessoas. Eu, particularmente, creio que sou uma mistura disso tudo aí. Cheio de muitas idéias, muitos sonhos e muitos projetos. Muita vontade e muito trabalho. Muitas vertentes e muitas atividades. Sou editor-adjunto do Crônicas Cariocas. Não deixem de visitar minhas colunas: Cinematógrafo; Crônicas; Poesias; e HQs. Ah! Visitem o Magia Rubro Negra , site de apaixonados pelo Mengão, para o qual tive o prazer de ser convidado a fazer parte da especial equipe!!!

domingo, 26 de junho de 2011

Intercurso

Rômulo mora no Grajaú, zona norte do Rio de Janeiro. Ele, seus pais, seu irmão mais velho e sua irmã caçula. Enfrentam as dificuldades comuns a uma família de classe média, mas são felizes e não passam necessidade. O pai possui um pequeno restaurante no bairro e a mãe é uma boleira de mão cheia, daquelas que não consegue dar conta de todas as encomendas que aparecem. Investem nos filhos com uma educação que, se não é a melhor, é acima da média.
São frequentadores assíduos da Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em frente à Praça Edmundo Rego, bem pertinho de casa. Uma família de católicos praticantes que seguem os mandamentos e que recebem os sacramentos. Não são ortodoxos, mas fervorosos. Uma fé verdadeira e inabalável. Não têm dúvidas que tudo o que construíram, e o que ainda construirão, é por meio da graça divina.
Rômulo é o segundo filho da família Pontes. Recém-saído da puberdade, um rapaz alto e de ombros largos. Não é o tipo musculoso, mas forte, aquele tipo que se costuma chamar parrudo. É um rapaz tímido, introvertido e respeitador. Ele é um símbolo de virtude. O que, aliás, é uma coisa muito difícil, visto que vive em guerra com os próprios hormônios. Seus maiores companheiros são os livros e o computador. Ler e escrever são o mundo dele. É comum encontrar o jovem no seu quarto lendo ou digitando o teclado do seu notebook.
Luz do quarto apagada, mas o abajur no criado mudo ligado. Rômulo cochila com o livro “Insônia”, de Stephen King, aberto sobre seu peito. Sem perceber, é claro, a ironia nisso. A respiração normal dá lugar a uma ofegante, os olhos mexem-se continuamente, cada vez mais rápido, por sob as pálpebras fechadas. O suor começa a brotar em sua testa. Como se explodisse, acorda catapultando o corpo para frente. Olha para os lados, situando-se. Começa a se acalmar, pega o livro que caiu no chão, joga-o na cama e pega o celular na cabeceira na cama. Duas da manhã. De repente, a energia é cortada. Não enxerga um ponto de luz sequer, nem mesmo pela janela. A única luminosidade vem do tênue luar.
Ele pensou em voltar a dormir, mas o barulho de vidro se despedaçando chamou sua atenção e ele decidiu verificar o que tinha acontecido. Ligou o aplicativo flashlight do celular e saiu do seu quarto. Chamou por seus pais e não houve resposta. Chamou seu irmão e nada. O quarto dos pais estava vazio. O do irmão também. O quarto da irmã estava com a porta fechada. Tentou abrir e não conseguiu. Escutou o choro dela e se preocupou. Pediu que ela abrisse a porta, mas não foi atendido. O choro ficou mais alto. Ele começou a forçar a fechadura, chamava pela irmã, parecia querer arrancar a porta do lugar, mas não adiantava. Começou a dar trancos com o ombro na porta, mas ela não cedia. E então ele escutou a menina gritar. Ele deu espaço da porta e se jogou em direção a ela. De nada adiantou. O grito cessou e um silêncio sepulcral seguiu-se. Ele chorou desesperado e encostou a testa na porta. Ela abriu como se estivesse apenas encostada. Entrou no quarto, procurou, procurou e não encontrou vivalma.
Saiu do quarto da irmã, passou pelo banheiro, que estava aberto e desocupado, e foi para as escadas. Descendo devagar, arriscava chamar a família, mas não recebia resposta alguma. O nervosismo e o medo vieram em profusão. Não entendia o que estava acontecendo. Onde estariam todos? As escadas acabavam em um corredor. À esquerda, copa e cozinha. À direita, banheiro social e sala de estar. O nervosismo era tal que a boca estava seca. Decidiu beber água. Passou pela sala de jantar e chegou à cozinha. Um estalo de vidro partindo. Iluminou o chão e viu cacos do que deveria ser um copo. Pegou um copo e foi à geladeira. Abriu-a e pegou uma garrafa a esmo. Encheu o copo. Ao beber, sentiu a textura e o gosto de sangue. Instintivamente, cuspiu e largou o copo, que se espatifou no chão. Iluminou o chão com o celular, mas só viu vidro e água.
O aparelho em sua mão emitiu um sinal sonoro que indica que a bateria estava acabando. Procurou velas para não ficar na escuridão. Achou uma no armário da cozinha. Pegou um pires, acendeu a vela, derreteu um pouco a parte de baixo e fixou no pequeno prato. Ao levantar a cabeça, viu uma moça parada no corredor, pouco antes da entrada da cozinha. Não conseguiu esboçar uma reação, a beleza da menina era estonteante. Longos cabelos pretos que caíam sobre ombros nus. Ela usava algo como um corpete escuro e uma saia, também escura, que delineava seu corpo. Parecia saída de um dos vídeos hentai que mantinha escondidos no seu lap top. No tremeluzir da vela, as sombras deram a impressão de que havia asas nas costas dela. Um estrondo de trovão desviou a atenção de Rômulo por um momento, que olhou para a janela atrás dele. Quando voltou o olhar para frente, a moça sumia, correndo na escuridão no final do corredor.
– Espera! – mas ela não esperou.
            Ele desatou a correr atrás dela. A vela em cima da mesa tremeluziu e apagou. Ao chegar à sala, ele escorregou e caiu de costas no chão. Algo úmido e pegajoso em toda sua volta. Um relâmpago e percebeu que estava em meio a muito sangue. Outro clarão e viu seus pais, pálidos e ensanguentados, à sua esquerda. Outro clarão e viu seu irmão, do mesmo jeito, à direita. Mais um relâmpago e viu sua irmã, sua pequena irmãzinha, olhando-o de cima, em pé atrás da sua cabeça. Sua pele alva demais, seus lábios negros como o entorno dos seus olhos e estes, sem íris e sem pupilas, apenas esclera. Ela levantou o braço e apontou a porta da rua. Nela, pintada com sangue, uma cruz irregular e de cabeça para baixo. Mais um relampear e ele se viu sozinho, deitado em chão limpo e a rua aparecendo pela porta aberta.
            Levantou, ainda sem entender o que estava acontecendo, mas decidiu correr para a rua. Nada em casa fazia sentido mesmo. Ventava forte, o céu estava negro. Raios rasgavam o céu, seguidos dos ensurdecedores trovões. A exemplo de casa, não viu uma pessoa sequer. Pensou se seria possível que todos tivessem sido arrebatados e apenas ele tivesse sido deixado para trás. Será que aquilo era o início do apocalipse bíblico? Avistou então a bela garota, que estava em sua casa, ao longe, no final da rua. Mal a viu e ela começou a correr em direção oposta à dele. Sem saber o que fazer, decidiu ir atrás dela. Em sua disparada, acabou chegando à Praça Edmundo Rego. A praça estava como fica nos finais de semana: os acessos a carros, fechados; as barraquinhas de produtos artesanais; os carrinhos e as motos elétricas que são alugadas para as crianças brincarem; as charretes; os carrinhos de pipoqueiro; as bicicletas; etc., mas sem quaisquer pessoas ou bichos.
            Do outro lado da praça, em frente à igreja, a garota olhava para ele. O cabelo esvoaçava ao sabor do vento. Ele continua tendo a impressão de ver asas atrás dela. O vento ficou mais forte, derrubando as bicicletas que ainda estavam em pé, virando barraquinhas, carrinhos e motos elétricas e empurrando os carrinhos de pipoqueiro para os lados. De repente, um raio atingiu a árvore próxima a ele, partindo-a. Um pedaço caiu por cima de um carro explodindo os vidros, fazendo um enorme estrondo e disparando o alarme do veículo. Ao olhar de novo para a igreja, a garota havia sumido, mas conseguiu observar a porta se fechando. Correu, com dificuldade, quase caindo algumas vezes, para a igreja. A grade da frente estava aberta, subiu o pequeno lance de escadas e tentou a porta da casa divina.
            Rômulo entrou, mas não passou do nártex, pois não enxergava nada à sua frente. A escuridão era densa, quase palpável. A única luz vinha da porta aberta. Ele tentou voltar, mas mesmo tendo dado poucos passos ao entrar, não conseguia alcançar a porta, que lentamente se fechava. A porta bateu ao mesmo tempo em que trovejou forte. Não dava para saber ao certo se o enorme som era da porta fechando ou de um dos trovões que insistiam lá fora. Não fazia diferença agora, o silêncio era tão absoluto quanto a escuridão. O medo dominou-o de vez. Com ele, veio o desespero e a nauseante sensação de impotência. Caiu de joelhos ao chão, colocou as mãos no rosto, arqueou o corpo e começou a chorar copiosamente.
– Deus, ajude-me! – Suplicou.
            O som de um grande porta movendo-se tirou-o do estupor. Ao olhar para frente, a nave da igreja estava toda iluminada, mas era totalmente diferente da que ele se lembrava. Portas gigantescas descortinavam um caminho em meio à escuridão à sua volta. Levantou-se desconfiado, mas reuniu coragem para passar pela porta. Percebeu que a iluminação era oriunda de grandes velas distribuídas ao longo do corredor. Ao caminhar em direção ao altar, observou que arcos separavam a nave principal das colaterais. Sob cada arco, havia uma cruz e em cada uma delas havia alguém crucificado. Na verdade, corpos mumificados. Não havia sangue. Era como se cada corpo tivesse sido pregado na cruz depois de totalmente ressecado. Era simplesmente apavorante. Ele tentava não olhar, mas não conseguia. Andava devagar, olhando para todos os lados com medo de que alguém ou algo tentasse pegá-lo. Os bancos ao longo da nave estavam repletos de pessoas sentadas trajando mantos negros, que pareciam não se importar ou achar normal ter crucificados à sua volta. Eles rezavam uma ladainha ininteligível. Ao levantarem, Rômulo percebeu que os fiéis eram nada mais que esqueletos vestidos.
            Ao chegar ao transepto, a visão era um misto de beleza, assombro e terror. A abside era toda trabalhada, magnífica. No centro dela, uma enorme cruz com o Cristo crucificado e, de cada lado dele, uma cruz com uma mulher nua crucificada ainda com vida. No presbitério, nada inanimado, apenas a linda garota que Rômulo perseguia desde sua cozinha. Ela sorria e era uma imagem convidativa e apaixonante, fazia-o esquecer toda a loucura que vivera até ali. Seu coração acelerou e os hormônios faziam seu corpo latejar. Ele não se conteve e caminhou até ela. A garota emanava um calor reconfortante e exalava um cheiro intoxicante, era pura magia. Rômulo estava louco por ela. Eles se abraçaram e se beijaram com volúpia. Deitaram-se, ele de costas, ela por cima. A saia não deixava que se visse coisa alguma, mas era óbvio que estavam com os corpos unidos como a natureza concebeu que um homem e uma mulher deveriam se conectar.
– Qual o seu nome? – conseguiu perguntar.
– Lilith – ela respondeu arrancando-lhe a camisa.
            Rômulo soltou o colete da garota enquanto se movimentavam lenta e sensualmente. Ele não percebia, ou não queria perceber, mas eram observados pelas mulheres crucificadas, que sorriam maliciosamente. Lágrimas de sangue escorriam dos olhos do pétreo Cristo. A ladainha dos mortos aumentou o volume. Subitamente, enormes asas de couro abriram-se nas costas da menina, enquanto ela arqueava o corpo para trás sobre o corpo do entregue jovem, que a achava ainda mais linda. A respiração tornou-se ofegante prenunciando o momento do êxtase. A ladainha, a respiração ofegante e os gemidos do casal misturavam-se. Os olhos da menina estavam diferentes, não havia íris ou pupilas, eram apenas escleras negras. Foi a última imagem que viu, pois fechou os olhos no momento do prazer sublime e tudo virou escuridão... e silêncio.
            A polícia não sabia com o que estava lidando. Não havia sinal de vandalismo ou mesmo de invasão à Igreja. Havia apenas um corpo em frente ao altar. Mas não era apenas um corpo, era um jovem mumificado que, em vez de estar coberto por faixas mortuárias de algodão ou linho, estava completamente nu. Nada indicava quem era o rapaz ou como havia chegado ali. Fiéis lotavam a igreja tentando saber o que acontecia ou tentando ver a múmia. Para completar a estranheza da situação, havia uma palavra entalhada em sua testa: súcubo.
– O que quer dizer essa palavra? – perguntou um dos policiais, visivelmente impressionado com o defunto à sua frente.
– Dizem as lendas que é um demônio mulher que invade o sonho dos homens para se alimentar da energia vital deles por meio de uma conjunção carnal – respondeu o pároco da Igreja.
            Os policiais olharam-se com ceticismo e certo ar de riso, mas o padre logo emendou:
– É claro que isso só pode ser fruto da imaginação fértil e doentia do criminoso.
           A família Pontes passou pela porta da Igreja e caminhou em direção à aglomeração para descobrir o que estava acontecendo e se tinha a ver com o sumiço do filho. A caçula percebeu uma garota de longos cabelos pretos, usando um corpete escuro e uma saia, também escura, parada na porta. Elas se olharam por um breve momento. A súcubo sorriu, virou-se lentamente e foi embora.


Um comentário:

Simplesmente $c0rpi@n@ disse...

Simplesmente muito bacana! ADOREI!!