A
vista lateral dá para a baía da Guanabara. É um daqueles prédios antigos, mas
bem conservados, do Largo do Machado. A varanda, estilo antigo, é toda de
alvenaria. O vento bate no rosto do menino Bruno. Seus olhos molhados e
vermelhos são prova de que havia chorado bastante pouco antes. O
pré-adolescente, vestindo o uniforme da escola, caminha em direção ao
parapeito, trazendo em uma das mãos uma revista e uma folha de papel. Ele
coloca a revista no parapeito, sobre ela a folha de papel. Pega uma pedra de um
dos vasos de planta e coloca como peso de papel sobre a revista e a folha. Ele
começa a subir no parapeito apoiando-se em um dos muitos vasos de planta largos
e pesados. O vaso falseia, ele balança, mas consegue subir. Fica em pé, de
frente para a rua, fecha os olhos e abre os braços.
A
escola ocupa quase um quarteirão. Grande, tradicional e particular. O pátio
recebe as turmas do sexto ao nono ano do ensino fundamental para a hora do
recreio. Abílio, um menino de catorze anos que sofre de uma pequena deficiência
mental, aparece. Ele está de uniforme como todos, mas chama a atenção pela
antiga mochila de couro pendurada nas costas, a antiga lancheira de couro a
tiracolo, um guarda-chuva embaixo do braço, embora esteja um dia de sol e sem o
menor indício de chuva, pelos óculos “fundo de garrafa” e pelo gibi que carrega
na mão. Senta-se ereto num canto do pátio e, de forma metódica, coloca o
guarda-chuva do seu lado direito e o gibi sobre ele, retira a lancheira do
pescoço e a coloca do seu lado esquerdo. Após abri-la, retira um pano e forra o
chão à sua frente. Pega uma garrafa de suco e a coloca no canto direito do
pano, uma maçã no canto esquerdo e um sanduíche, embalado com papel alumínio,
no centro. Verifica rapidamente se tudo está em ordem, desembrulha o sanduíche
e começa a comer.
Do
outro lado do pátio, Bruno está com mais quatro colegas: Vitor, Julio, César e
João.
-
Trouxe a parada? – pergunta Julio.
Bruno
mostra em suas mãos uma bomba de fogos de artifício, conhecida como “malvina”.
Julio assente e exclama:
-
Beleza!
João,
inseguro, pergunta:
-
Mas ele vai mesmo?
-
Pô! Ele vai todo dia, né? – responde Bruno
Vitor,
ansioso, com um sorriso no rosto, quer saber:
-
Como tu vai fazer?
-
Vou esperar ele entrar e depois vou lá. Boto a parada e volto.
-
Maneiro! Aí é só esperar o mané correr pelado pelo pátio.
Abílio
guarda metodicamente a garrafa e o pano, enrola os restos da maçã no papel
alumínio. Levanta-se, coloca a lancheira a tiracolo, pega o guarda-chuva e o
gibi, joga os restos no lixo e começa a caminhar. Passa pelo grupo de Bruno e
seus amigos, com receio, mas arrisca um sorriso e um cumprimento a Bruno, que
responde com um olhar firme, um quase imperceptível sorriso e um leve movimento
de cabeça. Abílio abre um grande sorriso.
Cesar,
percebendo, provocador que é, atiça:
-
Ih! Olha lá! O lesado é teu fã, aí!
Vitor
aproveita:
-
É mesmo! – e, com a voz afetada, provoca ainda mais – Meu herói!
Bruno,
sem graça, mas sem querer perder a pose com os amigos, retruca:
-
Qual é, mané? Para com isso!
Abílio
volta à sua condição de menino fechado e dirige-se aos banheiros no fundo do
pátio. Ato contínuo, Cesar dispara:
-
Aí! Já é! Vai lá, Bruno!
Bruno
observa a movimentação do menino e começa a segui-lo. Abílio chega à entrada,
olha para um lado e para outro, desconfiado, e entra no banheiro masculino. Ele
abre uma das cabines contíguas e entra. Coloca a mochila no chão, ao lado dela
a lancheira e o guarda-chuva pendurado na maçaneta da porta. Abaixa as calças,
senta-se no vaso sanitário, pega uma caneta na mochila, abre o gibi sobre suas
pernas e começa sua leitura. Bruno entra no banheiro, observa em que cabine
está o menino e se direciona à cabine ao lado. Acende a “malvina”, rola-a pelo
vão entre uma cabine e outra. A “malvina” para atrás do vaso de Abílio e Bruno
sai correndo do banheiro.
Bruno,
junto aos quatro companheiros, escuta o barulho da explosão e aguarda a reação
de Abílio. Algum tempo passa, meio minuto, nenhum grito e nenhuma ação. Um
pouco de fumaça sai do banheiro.
-
Cadê o cara? – Bruno pergunta assustado, mais para si que para seus
companheiros.
Um
inspetor, que escutou o barulho, surge correndo e entra no banheiro. Em
seguida, sai correndo e transtornado.
-
O que será que houve? – Pergunta João, com medo em sua voz.
Bruno
olha para ele e responde:
-
Sei lá! Acho que vou lá!
-
Tá maluco? – Pergunta Julio.
-
Droga! Tamos fu! – Exclama Vitor, sem o menor atrevimento de antes.
-
Vou lá! – Bruno diz e vai.
Bruno
entra, seguido de mais alguns curiosos, há muita fumaça. Ele se aproxima da
cabine do Abílio e vê que a porta está aberta para fora. Atrás da porta, está
Abílio caído no chão: Bruno vê apenas sua mão estendida para além da porta. Ele
caminha e, bem perto da porta, sente que pisou em algo, involuntariamente se
abaixa e pega o gibi que Abílio estava lendo. Logo em seguida, entram no
banheiro o inspetor e o diretor da escola.
-
Saiam todos! Vão para suas salas! – diz o diretor.
-
Vocês ouviram, meninos! Saiam, agora! – complementa o inspetor.
Os
meninos saem e eles se aproximam da cabine. O diretor olha para o inspetor com
tristeza, saca um celular, digita um número e aguarda atendimento.
A
sala de aula ostenta um silêncio tão assustador quanto incomum. As crianças
estão em choque pelo acontecido. Bruno está cabisbaixo, atrás da carteira, como
se olhasse para o chão. Uma orientadora, pesarosa e com os olhos injetados,
chega à porta e chama a atenção da turma. Ele levanta a cabeça, assustado.
-
Atenção, turma! Infelizmente, nosso aluno Abílio sofreu um acidente. Ele... –
ela hesita – ainda estamos apurando o que aconteceu, mas vamos liberá-los mais
cedo hoje.
Uma
aluna levanta-se e pergunta:
-
Ele morreu mesmo?
-
Ele... sim... infelizmente sim. Ele está com Deus agora.
Outra
aluna levanta-se.
-
Que que aconteceu?
-
Gente, ainda não sabemos... achamos que foi o coração, mas não temos certeza.
Ela
limpa os olhos com a mão direita, recompõe-se e começa a entregar a cada um dos
alunos uma folha de papel.
-
Isto é um informativo aos responsáveis de vocês. Tragam de volta assinado por
um deles, ok?
Bruno
abaixa a cabeça novamente. Não está olhando para o chão, mas, sim, para o gibi
que segura com as duas mãos.
Bruno
está saindo do colégio. Para, no portão, olha para o gibi em suas mãos e seus
olhos marejam. Passa pelo portão e começa a caminhar na rua. Atrás dele, uma
ambulância do corpo de bombeiros está chegando à escola.
Bruno
caminha na rua, passa em frente ao Palácio do Catete e chega a uma lanchonete
de uma conhecida rede de fastfood.
Ele para, observa o movimento e resolve entrar. Entra numa das filas. Há muito
falatório e risos. O ambiente é alegre. Ele olha para o gibi e, sem pedir nada,
sai da fila e vai para uma mesa. Senta-se e fica olhando para o gibi. Atrás da
sua mesa, algumas meninas lancham e conversam animadas. Bruno levanta a cabeça,
olhos marejados fitando o nada. Ele respira fundo, levanta e caminha em direção
à saída. Sai da lanchonete e anda pela calçada, quando se dá conta, chega à
entrada do seu prédio. Para e olha para cima. Respira fundo, sobe as escadas e
entra.
Bruno
está parado de frente para a porta do apartamento. Nela, o número 702. Ele
caminha em direção à porta, pega a maçaneta e gira. Ao entrar, encontra seus
pais discutindo.
-
Não dá! Assim, não dá! Larga do meu pé.
-
Não posso! Daqui a pouco vão cortar a luz! Isto é vergonhoso!
-
Eu estou desempregado, porra! Ainda não caiu a ficha, não?
-
Pai?
O
menino chega perto do pai e entrega o bilhete da escola. Mal ele lê, explode em
gritos.
-
Foi você não foi?
-
Eu... eu...
-
É claro que foi!
A
mãe, protetora, pergunta:
-
O que houve?
O
pai entrega o informativo à mãe. Ela começa a ler, mas ele não a espera
terminar.
-
Olha aí o que houve! É por isso que ligaram chamando a gente.
-
Não o acuse sem saber.
-
Sem saber? Sem saber? O colégio nos chamou para ir lá pra quê? É claro que foi
ele. Ele vive se metendo em confusão.
-
Ainda assim...
-
Ainda assim é o caralho! Toda vez que tem um problema, esse moleque tá
envolvido.
A
mãe termina de ler o bilhete, leva a mão à boca e, diz, assustada:
-
O menino... o menino...
-
Pois é, o garoto morreu.... provavelmente
por causa de uma brincadeira de mau gosto como as que o seu filho vive
aprontando.
Bruno
não aguenta mais e explode:
-
Você não sabe de nada! Não está nem aí para saber de nada! Não enche o saco!
O
pai dá um tapa em seu rosto e grita:
-
Eu tô cansado disso!
A
mãe, indignada, retruca:
-
Disso o quê?
-
Disso... disso... desta vida... o que que eu tô fazendo aqui...
-
Por que não vai embora então?
A
discussão volta a ser entre os dois, como se o garoto não estivesse ali. Bruno sente-se
um nada, uma coisa insignificante. Corre para o quarto e bate a porta.
Bruno
senta em sua cama, com olhar sentido. Ele pega o gibi de Abílio e vê em suas
mãos uma edição antiga e bem usada da revista do Superman. Bruno abre a revista
e começa a folheá-la. Nota que Abílio, em algumas páginas, fazia anotações:
abaixo da figura de cada personagem, escrevia um nome. Lois Lane tinha o nome
de Ângela sob seus pés; Lex Luthor, o nome de Vitor. Na última página, em que o
Superman está dizendo a Jimmy Olsen que este é o seu melhor amigo, o nome
Abílio está escrito sob os pés de Jimmy, e o nome Bruno sob as botas vermelhas
do Superman. Bruno fecha a revista e abaixa a cabeça. Tenta lutar contra a
vontade de chorar. Levanta a cabeça, chorando, um choro contido e triste que se
transforma em uma expressão de dor seguida de raiva. E então o choro torna-se
uma torrente. Ele se levanta e olha para as portas da varanda. Pega o bilhete informativo
da escola, uma caneta e escreve algo.
Os
pais de Bruno ainda estão discutindo quando escutam um som surdo de impacto
vindo de fora e um alarme de carro disparando. Eles se assustam e param de
discutir.
-
O que foi isso? – pergunta a mãe.
O
interfone toca. O tempo para. O interfone insiste. Pai e mãe parecem estátuas.
O rosto dela começa a ir do susto ao desespero. A urgência cresce e o tempo
volta a andar. Ela corre para o quarto, o marido a segue. Percebem que Bruno
não está lá dentro. Olham para as portas abertas da varanda. O pai senta na
cama completamente derrotado. A mãe corre para a varanda.
A
mãe debruça-se no parapeito, olha para baixo e grita. Ao seu lado, no
parapeito, resistindo ao vento, uma folha de papel sob uma pedra e sobre um
gibi. Neste papel, escrito em letras trêmulas, o texto: “Abílio, eu não soube
voar. Me desculpa.”. A pedra, por fim, não resiste ao vento e a folha voa.
FIM